O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov fez hoje em Luanda uma comparação entre o conflito na Ucrânia e a guerra civil em Angola, numa viagem onde procurou apoio às posições de Moscovo em relação a Kiev. A Rússia, como outros países, continua a julgar (se calhar com razão) que Angola é uma colónia, ou quintal, de Vladimir Putin.
Em causa, explicou o ministro russo num encontro com o seu homólogo angolano, Téte António, está o facto de Kiev estar a prejudicar os russófonos do país, levando Moscovo a ter de intervir para proteger essa parte da população.
“O mesmo conflito baseado na vontade da população de defender os seus direitos deflagrou na Ucrânia depois do golpe inconstitucional, depois do golpe de Estado militar e sangrento fazer chegar ao poder os nazis, neonazis declarados inclusive que apelavam a matar os russos, os judeus, os polacos”, disse Serguei Lavrov, numa referência à deposição, em 2014, do Presidente eleito, Viktor Yanukovytch.
Na ocasião, a Rússia ocupou a península da Crimeia e o leste da Ucrânia, um conflito que continuou em Fevereiro 2022 com uma invasão russa do resto do país, classificada por Moscovo como uma operação especial.
Serguei Lavrov disse que a Rússia tentou por vários meios acabar com esse conflito, mas apesar disso o regime de Kiev optou pela deflagração deste conflito, proibindo a língua e cultura russas e convidando os que associam a ela a abandonar o país.
“O Ocidente não reagiu a essas declarações racistas e colonialistas. Mais ainda, os EUA e seus aliados fizeram tudo para cultivar esse ódio e transformar a Ucrânia numa praça de armas tendo como objectivo colocar lá bases militares e criar ameaça a toda a região”, disse Serguei Lavrov.
O “objectivo declarado” dessa estratégia era “envolver e atrair a Ucrânia para a NATO”, afirmou, recordando o apoio da então União Soviética ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder há 47 anos graças, é verdade, ao apoio bélico de Moscovo) na sua guerra contra Portugal e depois na guerra civil, em parceria com Cuba, contra a União para a Independência Total de Angola (UNITA), apoiada pelos Estados Unidos e pelo regime do ‘apartheid’ da África do Sul.
“O povo angolano sabe bem qual é o preço da independência, qual o preço do livre exercício dos direitos tradicionais dos direitos de cada angolano e, da mesma maneira, Angola participa (agora) activamente no esforço do estabelecimento da paz noutros países para segurança, paz e prosperidade nesses países”, vincou Serguei Lavrov, fazendo uma comparação entre os dois conflitos.
As relações entre Moscovo e o partido no poder em Angola têm relações que “remontam a longos anos atrás, ao período da guerra da libertação”, realçando o objectivo de chegar a uma parceria estratégica entre os dois países.
Serguei Lavrov elogiou também a posição “equilibrada” de Angola nas Nações Unidas sobre decisões, “que dividem a comunidade internacional, nomeadamente as resoluções relativas ao conflito na Ucrânia”.
Já Téte António (que fez o Mestrado em Relações Económicas Internacionais pela Universidade de Kiev e a Licenciatura em Diplomacia Preventiva pela Universidade de Columbia, Nova Iorque, EUA) salientou que, no âmbito regional Angola privilegia o diálogo inclusivo, os compromissos políticos assentes no interesse nacional para o restabelecimento da ordem constitucional e para garantir a estabilidade dos países em conflito, respeitando sempre o princípio da não-ingerência nos assuntos internos de cada estado.
Angola defende também a via negocial e a procura de uma solução mutuamente aceite, prosseguiu, realçando a luta contra todos os flagelos que afectam a estabilidade e o desenvolvimento e primando pelo respeito do direito internacional.
O encontro é também “oportunidade de ouro de ter o privilégio de escutar a vossa análise, opinião, sobre o conflito que hoje afecta o mundo”, afirmou Téte Antonio, referindo-se à guerra entre a Rússia e Ucrânia e sublinhando a preocupação com inúmeras baixas humanas e destruição de infra-estruturas.
O governante angolano frisou que a guerra constitui uma séria ameaça à paz e segurança internacionais e que “ todas as nações do mundo são vítimas de maneira variável deste conflito”, mostrando-se preocupado com a degradação exponencial da situação no terreno.
Perante esta situação que afecta dois países aos quais Angola está ligado na história, o chefe da diplomacia angolana defendeu o princípio da procura da solução através do diálogo, incluindo uma cessação das hostilidades.
MPLA EM JOGO DUPLO? REGRA GERAL É ISSO…
No dia 28 de Abril do ano passado, Vladimir Putin falou ao telefone com João Lourenço, por iniciativa do Presidente angolano. Bons e velhos amigos serviam (na altura) exactamente para isso. Na altura admitia-se a possibilidade de o MPLA usar em Angola a estratégia russa na Ucrânia, alegando que a única maneira de se defender era “desnazificar” a UNITA… No entanto, Putin falhou. João Lourenço virou-se para Joe Biden.
Segundo a agência russa RIA Novosti, a pedido de João Lourenço, o Presidente Putin informou, na altura, “sobre as causas e objectivos da operação militar especial para proteger o Donbass e também fez avaliações fundamentais da situação das negociações com representantes ucranianos”.
A “satisfação com o nível de relações amistosas” entre Angola e Rússia “foi expressa por ambos os lados”, indicou a agência russa. “Para ambos os lados”, recorde-se.
“Os compromissos com o seu desenvolvimento, incluindo a cooperação das esferas comercial, económica, científica e técnica” foram igualmente assinalados na conversa, adiantava a agência de propaganda do regime russo.
Antes, a 3 de Março, Sergei Lavrov acusou os líderes ocidentais de terem planos para uma “verdadeira guerra” contra a Rússia, que só poderá ser nuclear. Eritreia, Bielorrússia e Coreia do Norte subscrevem sem rodeios. Angola e Moçambique também subscreveram mas de forma não formal, como o MPLA explicou em “off” ao chefe Putin. Entretanto, apesar de general formado, condecorado e formatado pelos russos, João Lourenço mandou (até ver…) o seu querido líder (Putin) dar uma volta ao bilhar grande.
“Se algumas pessoas estão a planear uma verdadeira guerra contra nós, e eu penso que estão, deveriam pensar cuidadosamente”, disse Lavrov. “Não deixaremos que ninguém nos desestabilize”, assegurou. Bem que poderia parafrasear Agostinho Neto e dizer que “não vamos perde tempo com julgamentos”.
Se calhar, porque a UNITA tinha, na altura, sobre este assunto uma posição diametralmente oposta à do MPLA, admitia-se que os sipaios do MPLA iriam utilizar na campanha eleitoral a tese de que UNITA era um partido neonazi. Não o fizeram com todas as letras, mas andaram lá perto. Mas, afinal, a UNITA também tinha razão nesta matéria da Rússia/Ucrânia, tal como agora reconhece João Lourenço.
Em Março, o embaixador norte-americano em Luanda, Tulinabo Salama Mushingi, afirmou que a posição assumida por Angola (MPLA) de não-condenação da invasão russa da Ucrânia não afectaria a relação com os Estados Unidos, garantindo que os dois países iriam “continuar a trabalhar juntos”.
Angola, disse Tulinabo Salama Mushingi, é uma das quatro parcerias estratégicas dos EUA em África e irá prosseguir dessa forma. “Para nós, um voto sobre este assunto não afecta a nossa relação, vamos continuar a trabalhar juntos”, afirmou.
Angola absteve-se, no início de Março, na votação da Assembleia Geral da ONU que condenou a invasão da Ucrânia pela Federação Russa com 145 países a favor e cinco contra. No total, 35 países abstiveram-se, incluindo 17 africanos. Ao abster-se de condenar o agressor, ao contrário da UNITA, o MPLA assumiu a condenação do agredido. Só seria preocupante se Angola não fosse uma sólida democracia como é a Rússia, a Eritreia ou a Coreia do Norte…
“Sobre esta questão, todos nós podemos concordar com os factos quanto ao que aconteceu nesta região: um país atacou o outro, um país está a bombardear outro e a destruir o seu modo de vida. São factos. Mas quando chegamos ao momento do voto, cada país tem direito de decidir como votar. O que é claro é que a maioria dos países do mundo votaram a favor desta resolução e só cinco votaram contra, mas não vale a pena passar muito tempo a discutir como votou cada país”, sublinhou o diplomata norte-americano.
Tulinabo Salama Mishingi adiantou que o assunto tinha sido falado com a contraparte angolana: “Nós explicámos a nossa posição e Angola explicou a sua, é isso que fazemos. No que concordamos, vamos avançar; quando não concordamos vamos esperar e continuar a discutir”. Previa-se que até que o mundo livre conseguisse “transformar” Vladimir Putin de bestial em besta, o MPLA continuaria a considerá-lo bestial. Entretanto, João Lourenço percebeu que Putin estava muito perto de ser considerado uma besta e que, nessa qualidade, não poderá superar o valor da Oferta Pública de Compra (OPC) oferecido pelos EUA em relação a Angola.
Sobre se o facto de as empresas russas que estão a ser alvo de sanções poder abrir mais portas às empresas americanas, Tulinabo Salama Mishingi considerou que a prioridade é dar a Angola e aos angolanos “escolhas”.
O diplomata salientou que as empresas devem actuar de forma transparente e admitiu que as situações de conflito abrem oportunidades, mas também alguns desafios.
No que concerne aos desafios (no âmbito da OPC), notou que as empresas norte-americanas se debatem com o factor língua, bem como processos burocráticos complexos que devem ser feitos com mais clareza, nomeadamente quanto aos procedimentos que as empresas devem seguir.
“Mas não nos concentramos muito nos desafios, concentramo-nos nas oportunidades”, continuou o diplomata, assinalando que “há uma vontade política clara” no sentido de que o país progrida, adoptando medidas para combater a corrupção e promover a diversificação económica. Coisa que o MPLA promete fazer há… 47 anos. Só promete porque, reconheça-se, se combater eficazmente a corrupção entra num processo célere de auto-extinção.
“Isto são oportunidades, (Angola) é um grande país, com 30 milhões de pessoas, que tem uma liderança regional, estabilidade e segurança”, elementos que os investidores norte-americanos procuram. “Acreditamos no sucesso aqui, é um sinal de que podemos ter sucesso nesta região, além da África do Sul que é um país anglófono”, complementou.
Tulinabo Salama Mushingi nasceu no então Congo Democrático (hoje República Democrática do Congo), quando este país estava ainda sob dominação colonial da Bélgica, e estudou no Instituto Superior Pedagógico em Bukavu, onde obteve uma licenciatura e um mestrado.
Mais tarde, depois de emigrar para os Estados Unidos, obteve um outro mestrado pela Universidade de Howard e um doutoramento em Linguísticas pela Universidade de Georgetown em 1989. A sua dissertação foi o uso do Swahili como meio de educação.
Mushingi juntou-se ao Departamento de Estado em 1993 e trabalhou na embaixada americana em Moçambique entre 1994 e 1996. Teve também postos diplomáticos na Tanzânia, Marrocos e Malásia.
Tulinabo Salama Mushingi foi o primeiro cidadão americano nascido em África a ser embaixador num país do continente e, numa entrevista em 2013, afirmou que “teria sido um privilégio representar os Estados Unidos da América em qualquer país do mundo, mas ir para África como o primeiro africano naturalizado americano é mais especial para mim…. (porque) posso demonstrar que na verdade quando se abrem oportunidades para o povo nesses países africanos pode haver esperança”. Mushingi fala português. O primeiro país africano de língua portuguesa onde Mushingi foi embaixador foi a Guiné-Bissau, embora residente no Senegal.
Folha com Lusa